sábado, 8 de junho de 2013

"Pedagogia como forma de arte" - Entrevista com Peter Biekarck publicada no Diário de Pernambuco


No quadro de avisos afixado no pátio de um colégio, uma convocação chama pais e alunos a participarem da encenação teatral da Festa da Lanterna. Os personagens são dispostos em uma lista onde mães e crianças dividem os papéis. Ao lado, os seguintes dizeres não passam despercebidos: “Nosso maior empenho deve ser desenvolver seres humanos livres, capazes de dar sentido e direção às suas vidas”. A frase é atribuída ao austríaco Rudolf Steiner, fundador da Pedagogia Waldorf, que trabalha o desenvolvimento físico, espiritual e anímico do aluno por meio da arte e da expressão corporal. As aulas são concebidas como um preparo para a vida. No bairro do Rosarinho, no Recife, funciona um colégio que adotou esta forma de pensar. Lá, entrevistamos um dos maiores expoentes deste modelo de aprendizagem: o pedagogo Peter Biekarck*, que possui especialização em Pedagogia Waldorf pelo Emerson College, na Inglaterra. Ele foi professor na Escola Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo por 25 anos e é palestrante e conferencista internacional. 

*Saiba mais:
O paulista Peter Biekarck é um dos maiores estudiosos da Pedagogia Waldorf no país. Ele atua na coordenação de cursos de fundamentação e formação de professores.
Também é colaborador da Federação das Escolas Waldorf no Brasil e membro da Sociedade Antroposófica no Brasil.
A Pedagogia Waldorf foi criada em 1919 por Rudolf Steiner. Uma de suas características é não cultivar precocemente o pensar intelectual.
As aulas devem desenvolver capacidades como criatividade, responsabilidade, flexibilidade e senso crítico.
Todas as crianças aprendem a cantar, tocar um instrumento musical, esculpir madeira, falar claramente e atuar em peças, sempre de forma harmoniosa e respeitosa.
As escolas Waldorf não têm ligação com doutrinas religiosas, mas defendem uma dimensão espiritual do ser humano e de tudo o que existe. Steiner acreditava na reencarnação.

"Ainda se fala pouco de ecologia humana, de entender o outro"


03/06/2013 03:00
O que é a Pedagogia Waldorf? 
Eu diria que sua característica central é o compromisso que ela tem com a criança, sempre respeitando as necessidades de acordo com a faixa etária e educando para que a criança seja ela mesma e encontre seu lugar no mundo. É uma pedagogia que se processa tanto em cima da arte que, às vezes, é confundida com uma escola de arte. E o que é a prática pedagógica, senão uma forma de arte?

Ela existe há quase cem anos. O que mudou? 
Quem vê de fora acha que não mudou, mas o que acontece é que essa pedagogia se fundamenta numa mudança de pensamento que é um desafio porque ela propõe outra compreensão do ser humano. Por isso, não se torna obsoleta. Mas se o mundo mudou, os professores precisam crescer dentro desta nova compreensão. A exigência maior é de transformação do professor mais do que da pedagogia em si.
Como é a relação entre professor e aluno? 
Se investe muito no fortalecimento dos laços humanos. Cabe ao professor dar a aula principal, que é a primeira do dia, com duração de duas horas. Ele desenvolve de forma artística uma matéria por vez e isso acontece em ciclos de três a quatro semanas. Geralmente, ele fica oito anos com a mesma classe e isso torna suas aulas especiais, feitas à mão para aquelas crianças.

De que modo uma aula de biologia poderia ser lecionada artisticamente? 
Levamos a atenção dos estudantes para o reino vegetal. Perguntamos qual a cor predominante e a resposta óbvia é verde. Mas mostramos que o tronco e os frutos têm outras cores. Voltando ao verde, de onde ele sai? Das folhas. Assim, vamos chegando mais perto. A parte de cima das folhas e a de baixo são diferentes. As crianças também aprendem que a árvore quer ir para o céu, mas ela está presa na terra. E o que acontece na árvore é um milagre.

Você falou em "milagre". As escolas Waldorf são religiosas? 
Primeiro você precisa responder o que é religião. Confuso? As ciências naturais são uma religião, mas que aboliram o nome “Deus”. Veja a fotossíntese. Os cientistas até podem pesquisar e explicar todos os processos, mas a verdade é que ninguém sabe exatamente o que é a fotossíntese. A alma da criança entende que isso é um milagre.

Como ensinar desta forma e lidar com a sociedade materialista? 
Há muitos anos, um grupo de extraterrestres chamados “ecologistas” desembarcou aqui na Terra. Eles quase foram crucificados para que a gente não morresse de tanta esperteza. Felizmente, essa mentalidade avançou, mas ainda se fala pouco de ecologia humana, de entender o outro. A nossa cultura ocidental fundamentou o conhecimento no prefixo “anti” e não no “pró”. A medicina, por exemplo, é baseada na patogênese. Alguns médicos, que também são ETs, começaram a aparecer. Eles querem saber o contrário: o que provoca saúde?

Meninos e meninas aprendem tricô juntos. Mas a questão da identidade de gênero ainda não foi completamente superada. Qual a sua opinião? 
É uma estupidez cultural da época em que as mulheres eram dominadas pelo machismo. Esse trabalho com fios é importante e vai do início ao fim da vida escolar nas escolas Waldorf. É o conhecimento da psicomotricidade. Com tricô, você tece uma trama que forma uma superfície e qualquer falha vai afetá-la. Pensar é fazer tricô interiormente. Por isso, quando nos distraímos, falamos que perdemos o fio da meada.

Qual a grande diferença entre o ensino Waldorf e o tradicional? 
Os currículos que aparecem hoje vêm de uma pressão social e da necessidade de produzir resultados para fazer política. Há um ou outro fundamento pouco integrado à formação da criança, mas, por via de regra, outros interesses vão ser priorizados. É como se a criança fosse uma engrenagem que precisa rodar bem numa máquina educacional que ninguém controla e nem sabe para onde vai. O resultado disso vai aparecer e não será bom.

As pessoas estão perdendo a capacidade de ouvir. Como trabalhar isso com as crianças? 
Existe uma ONG chamada Khan Academy, onde o aluno aprende tudo através de videoaulas no computador. Eu me pergunto: o quanto ele consegue ouvir alguém que está ao vivo e a cores na sua frente? Os seres humanos estão se tornando ocos e apáticos porque, quando as coisas são em excesso, criamos uma superficialização das relações humanas. Nossa escola é feita à mão.

Mas a tecnologia também pode contribuir para o ensino infantil? 
Temos que ter cuidado para que a criança não seja vítima dessa tecnologia. Posturas como essa cultura de entregar tablets a estudantes são uma aberração. Isso desumaniza o ser humano. É um pensamento epidêmico motivado por interesses econômicos para transformar o humano em homo economicus, educado para o consumo mundial.

Nas escolas Waldorf, as crianças aprendem outros idiomas. Qual é o método que vocês usam?
Elas começam com seis ou sete anos, no início do ensino fundamental. O objetivo é fazer com que a criança consiga vivenciar o universo e a beleza do idioma através de poesia, rima e dramatizações. Isso geralmente é feito através de imitações. Cada língua é um universo em si, um corpo dotado de cultura no qual a gente vive.

Qual a importância da imitação para escolas Waldorf?
Todo ser humano só pensa porque imitou. Quanto menor, especificamente nos sete primeiros anos de vida, a imitação se torna mais importante. É através disso que ela vai desenvolver sua imaginação e outras habilidades.

Existem critérios de avaliação?
No sistema familiar existem critérios de avaliação? Quanto mais próximo a comunidade escolar estiver da criança, menos vamos precisar de avaliações externas. O que acontece é que ao fim de cada ano o professor redige uma carta para os pais de cada aluno, contando sobre o que foi aprendido e as experiências vividas em sala de aula. Sugiro até que os estudantes não leiam naquele momento, mas guardem para olhar aquilo no futuro e ter como uma lembrança do que foi vivido na escola.


Autor da entrevista: Thiago Neres

thiagoneres.pe@dabr.com.br