No quadro de avisos afixado no pátio
de um colégio, uma convocação chama pais e alunos a participarem da encenação
teatral da Festa da Lanterna. Os personagens são dispostos em uma lista onde
mães e crianças dividem os papéis. Ao lado, os seguintes dizeres não passam
despercebidos: “Nosso maior empenho deve ser desenvolver seres humanos livres,
capazes de dar sentido e direção às suas vidas”. A frase é atribuída ao
austríaco Rudolf Steiner, fundador da Pedagogia Waldorf, que trabalha o
desenvolvimento físico, espiritual e anímico do aluno por meio da arte e da
expressão corporal. As aulas são concebidas como um preparo para a vida. No
bairro do Rosarinho, no Recife, funciona um colégio que adotou esta forma de
pensar. Lá, entrevistamos um dos maiores expoentes deste modelo de
aprendizagem: o pedagogo Peter Biekarck*, que possui especialização em Pedagogia
Waldorf pelo Emerson College, na Inglaterra. Ele foi professor na Escola
Waldorf Rudolf Steiner de São Paulo por 25 anos e é palestrante e conferencista
internacional.
*Saiba mais:
O paulista Peter Biekarck é um dos
maiores estudiosos da Pedagogia Waldorf no país. Ele atua na coordenação de
cursos de fundamentação e formação de professores.
Também
é colaborador da Federação das Escolas Waldorf no Brasil e membro da Sociedade
Antroposófica no Brasil.
A
Pedagogia Waldorf foi criada em 1919 por Rudolf Steiner. Uma de suas
características é não cultivar precocemente o pensar intelectual.
As
aulas devem desenvolver capacidades como criatividade, responsabilidade,
flexibilidade e senso crítico.
Todas
as crianças aprendem a cantar, tocar um instrumento musical, esculpir madeira,
falar claramente e atuar em peças, sempre de forma harmoniosa e respeitosa.
As escolas Waldorf não têm ligação
com doutrinas religiosas, mas defendem uma dimensão espiritual do ser humano e
de tudo o que existe. Steiner acreditava na reencarnação.
"Ainda
se fala pouco de ecologia humana, de entender o outro"
03/06/2013 03:00
O que é a
Pedagogia Waldorf?
Eu diria
que sua característica central é o compromisso que ela tem com a criança,
sempre respeitando as necessidades de acordo com a faixa etária e educando para
que a criança seja ela mesma e encontre seu lugar no mundo. É uma pedagogia que
se processa tanto em cima da arte que, às vezes, é confundida com uma escola de
arte. E o que é a prática pedagógica, senão uma forma de arte?
Ela existe
há quase cem anos. O que mudou?
Quem vê de
fora acha que não mudou, mas o que acontece é que essa pedagogia se fundamenta
numa mudança de pensamento que é um desafio porque ela propõe outra compreensão
do ser humano. Por isso, não se torna obsoleta. Mas se o mundo mudou, os
professores precisam crescer dentro desta nova compreensão. A exigência maior é
de transformação do professor mais do que da pedagogia em si.
Como é a
relação entre professor e aluno?
Se investe
muito no fortalecimento dos laços humanos. Cabe ao professor dar a aula
principal, que é a primeira do dia, com duração de duas horas. Ele desenvolve
de forma artística uma matéria por vez e isso acontece em ciclos de três a
quatro semanas. Geralmente, ele fica oito anos com a mesma classe e isso torna
suas aulas especiais, feitas à mão para aquelas crianças.
De que
modo uma aula de biologia poderia ser lecionada artisticamente?
Levamos a
atenção dos estudantes para o reino vegetal. Perguntamos qual a cor
predominante e a resposta óbvia é verde. Mas mostramos que o tronco e os frutos
têm outras cores. Voltando ao verde, de onde ele sai? Das folhas. Assim, vamos
chegando mais perto. A parte de cima das folhas e a de baixo são diferentes. As
crianças também aprendem que a árvore quer ir para o céu, mas ela está presa na
terra. E o que acontece na árvore é um milagre.
Você
falou em "milagre". As escolas Waldorf são religiosas?
Primeiro
você precisa responder o que é religião. Confuso? As ciências naturais são uma
religião, mas que aboliram o nome “Deus”. Veja a fotossíntese. Os cientistas
até podem pesquisar e explicar todos os processos, mas a verdade é que ninguém
sabe exatamente o que é a fotossíntese. A alma da criança entende que isso é um
milagre.
Como
ensinar desta forma e lidar com a sociedade materialista?
Há muitos
anos, um grupo de extraterrestres chamados “ecologistas” desembarcou aqui na
Terra. Eles quase foram crucificados para que a gente não morresse de tanta
esperteza. Felizmente, essa mentalidade avançou, mas ainda se fala pouco de
ecologia humana, de entender o outro. A nossa cultura ocidental fundamentou o
conhecimento no prefixo “anti” e não no “pró”. A medicina, por exemplo, é
baseada na patogênese. Alguns médicos, que também são ETs, começaram a
aparecer. Eles querem saber o contrário: o que provoca saúde?
Meninos e
meninas aprendem tricô juntos. Mas a questão da identidade de gênero ainda não
foi completamente superada. Qual a sua opinião?
É uma
estupidez cultural da época em que as mulheres eram dominadas pelo machismo.
Esse trabalho com fios é importante e vai do início ao fim da vida escolar nas
escolas Waldorf. É o conhecimento da psicomotricidade. Com tricô, você tece uma
trama que forma uma superfície e qualquer falha vai afetá-la. Pensar é fazer
tricô interiormente. Por isso, quando nos distraímos, falamos que perdemos o
fio da meada.
Qual a
grande diferença entre o ensino Waldorf e o tradicional?
Os
currículos que aparecem hoje vêm de uma pressão social e da necessidade de
produzir resultados para fazer política. Há um ou outro fundamento pouco
integrado à formação da criança, mas, por via de regra, outros interesses vão
ser priorizados. É como se a criança fosse uma engrenagem que precisa rodar bem
numa máquina educacional que ninguém controla e nem sabe para onde vai. O
resultado disso vai aparecer e não será bom.
As
pessoas estão perdendo a capacidade de ouvir. Como trabalhar isso com as
crianças?
Existe uma
ONG chamada Khan Academy, onde o aluno aprende tudo através de videoaulas no
computador. Eu me pergunto: o quanto ele consegue ouvir alguém que está ao vivo
e a cores na sua frente? Os seres humanos estão se tornando ocos e apáticos
porque, quando as coisas são em excesso, criamos uma superficialização das
relações humanas. Nossa escola é feita à mão.
Mas a
tecnologia também pode contribuir para o ensino infantil?
Temos que
ter cuidado para que a criança não seja vítima dessa tecnologia. Posturas como
essa cultura de entregar tablets a estudantes são uma aberração. Isso
desumaniza o ser humano. É um pensamento epidêmico motivado por interesses
econômicos para transformar o humano em homo economicus, educado para o consumo
mundial.
Nas
escolas Waldorf, as crianças aprendem outros idiomas. Qual é o método que vocês
usam?
Elas
começam com seis ou sete anos, no início do ensino fundamental. O objetivo é
fazer com que a criança consiga vivenciar o universo e a beleza do idioma
através de poesia, rima e dramatizações. Isso geralmente é feito através de
imitações. Cada língua é um universo em si, um corpo dotado de cultura no qual
a gente vive.
Qual a
importância da imitação para escolas Waldorf?
Todo ser
humano só pensa porque imitou. Quanto menor, especificamente nos sete primeiros
anos de vida, a imitação se torna mais importante. É através disso que ela vai
desenvolver sua imaginação e outras habilidades.
Existem
critérios de avaliação?
No sistema familiar existem critérios
de avaliação? Quanto mais próximo a comunidade escolar estiver da criança,
menos vamos precisar de avaliações externas. O que acontece é que ao fim de
cada ano o professor redige uma carta para os pais de cada aluno, contando
sobre o que foi aprendido e as experiências vividas em sala de aula. Sugiro até
que os estudantes não leiam naquele momento, mas guardem para olhar aquilo no
futuro e ter como uma lembrança do que foi vivido na escola.
Autor da
entrevista: Thiago Neres
thiagoneres.pe@dabr.com.br